30 maio 2013

Relato de um ativista do Acampamento Ocupa Árvores



Considerando a quantidade de bobagens, omissões e mentiras descaradas que estão sendo divulgadas na grande mídia de Porto Alegre, decidi escrever meu relato a respeito dos acontecimentos desta madrugada no gramado ao lado do prédio da Câmara de Vereadores, de onde o acampamento Ocupa Árvores e seus habitantes foram desalojados a pauladas pela Brigada Militar. Penso que sou bastante capacitado pra falar sobre este assunto, por que eu fui um dos algemados. E por isso, descreverei os fatos da maneira mais direta, e talvez crua, que eu consigo imaginar.

Primeiro, eu não sei por que serei indiciado por “desacato ou desobediência à ordem policial”, e não sei por que a Zero Hora, maior jornal do Rio Grande do Sul, dá a entender na reportagem em seu site que apenas os manifestantes que resistiram à retirada das barracas foram algemados. Nosso crime, se realmente existe algum, foi termos montado nossas barracas em uma área de grande interesse para a especulação imobiliária e para as grandes empreiteiras, e nossa resistência talvez tenha sido nossa cara de sono e espanto. Fomos acordados à pauladas e gritos para que nos deitássemos no chão e calássemos a boca, enquanto os policiais presentes se certificavam de que todos nós estávamos algemados. Também não entendo que tipo de resistência nós, os vinte e sete prisioneiros, sem treinamento ou equipamento militar, poderíamos oferecer contra todo o contingente policial que foi deslocado para nos conter. E não precisa acreditar em mim, basta olhar na notícia da Zero Hora as fotos e os batalhões envolvidos – 200 soldados da Brigada Militar, do Batalhão de Operações Especiais (BOE) e do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE), sem contar a polícia montada, que também estava lá.

Devemos ser um grupo bastante perigoso para justificar não apenas todo esse exército contra nós, como também o profundo desprezo, ridículo e humilhação com que fomos tratados pelos soldados da operação. Fomos arrancados de nossas barracas, jogados no chão, algemados e, quando abríamos a boca para pedir qualquer coisa, não importasse com quanta cordialidade o fizéssemos, ou nos mandavam calar a matraca, ou sofríamos algum tipo de agressão. Talvez por eu ser homem, branco e aparentemente de classe média, eu tive tratamento VIP, e só tomei uns puxões pelas algemas, uns empurrões e muita cara feia, nada que valesse um exame de corpo-delito. Porém, aposto que não posso dizer o mesmo dos companheiros que são negros, moram na rua ou parecem ser pobres. E mesmo assim, apesar de terem pegado leve comigo, eu nunca me senti tão humilhado em toda minha vida.

Depois de termos sido empilhados em um camburão improvisado e levados para a 9ª Delegacia de Polícia, ao lado do Mercado Público, fomos submetidos a um chá de cadeira de algumas horas – só que algemados, em pé e de cara contra a parede. Quem tentasse telefonar para algum familiar para avisar que estava preso tinha seu celular confiscado, quem tentasse registrar a cena com algum aparelho fotográfico era intimidado, e quem quer que falasse um ai tomava um empurrão. A mensagem que os soldados nos passavam era clara: obedeçam, ou vão apanhar. Às vezes, essa mensagem vinha de maneira clara, e em outras, sob um verniz de educação: “tô te pedindo numa boa”, “por gentileza”.

Por algum motivo que desconheço, fui premiado com uma revista completa por dois brigadianos homens, que me levaram, sozinho, para um banheiro ali no canto. Eu, muito ingênuo, perguntei se eu iria apanhar. Um dos policiais riu da minha cara, dizendo “olha as idéias que vocês tem, agora tira a calça.” Antes de me mandar baixar a cueca, ele me perguntou se eu tinha alguma droga comigo – talvez por conta de algum boato de que sexo comigo era viciante, ou qualquer outra idéia sobre drogas tão razoável quanto. E, enquanto passava por esse pente fino, tentava estabelecer um diálogo, saber por que diabos eu estava ali, qual era meu crime. Contudo, a conversa acabava rápido, por que tudo o que tinham para me dizer era “por que tu foi desobedecer as ordens por causa de umas árvores?” Voltei, então, para a sala de espera, novamente algemado, até que algum oficial tivesse a boa vontade de mandar retirá-las.

Após termos todos sidos devidamente identificados e fichados, passamos por uma última humilhação: recolher nossas coisas, jogadas de qualquer jeito e quebradas na caçamba de um caminhão. Mais uma vez, eu não tive problemas, pois tinha levado apenas uma mochila com alguns livros, e o maior risco que eu corria era de ir trabalhar sem um pé da meia. Outros camaradas meus, que trabalham com artesanato, não são classe média ou que moram na rua, a perda foi muito maior – perderam suas poucas e preciosas roupas, seu sustento, seu lar. Fico imaginando que muita gente que vai ler esse meu texto vai pular direto para os comentários pra me chamar de vagabundo, dizer que eu tinha mais é que apanhar por não trabalhar e obedecer a lei, que mendigo é tudo drogado, puto ou lixo humano e que é melhor eu calar o bico e tocar minha vida, parar de me meter onde não sou chamado. Pra essas pessoas, que provavelmente acham a frase “direitos humanos para humanos direitos” o máximo, posso apenas dizer: ainda bem que nada disso aconteceu com vocês. Ainda bem que quando um policial chega perto, vocês não sintam o sangue gelar, e ainda bem que vocês não sabem o que é perder tudo que você chama de vida assim, de uma hora para a outra, por puro capricho de um governante qualquer. Esta madrugada, acampamos no largo do Gasômetro para impedir que elas fossem cortadas, mas nossa luta não é só isso. Eu não milito em causa própria, por glórias, atenção, dinheiro ou cargos. Eu luto por que eu quero viver em um mundo onde ninguém – nem vocês, nem os moradores de rua, nem os soldados da Brigada – precise passar por privação, desprezo e humilhação. Esta luta também é sua e estamos do mesmo lado. Só que você ainda não percebeu, por que não entende que a liberdade de um é a liberdade de todos.

Por fim, este dia nasceu triste, cinzento e opressivo, mas também é um dia de alegria, pois sinto que hoje tive meu batismo de fogo. Quando fui algemado, eu era apenas um menino idealista, mas quem saiu da delegacia foi um homem. Finalmente, entrei para o honroso grupo de pessoas que foram presas por que ousaram desafiar a tirania e combater a injustiça. Finalmente, sinto-me um igual, não apenas diante de homens e mulheres como Gandhi, Emma Goldman e Thoreau, mas também daqueles camaradas que a muito tempo gritavam para que eu me somasse à luta. Se queriam me assustar com ameaças, e fazer com que eu me recolhesse para dentro do meu mundo, fracassam, pois hoje, descobri que não quero viver em uma “democracia” eu precise me calar e seguir as ordens dos meus superiores, e jurei que farei tudo que estiver ao meu alcance para tornar o mundo onde eu quero que meus filhos cresçam. Guardarei um lugar aqui pra ti, no dia em que perceberes o mesmo, e seguirei lutando enquanto você não acorda.
Um integrante do Acapamento Ocupa Arvores.

2 comentários:

Anônimo disse...

Eu lí seu texto inteiro, saiba que você não está sozinho. São poucos que se dão conta da realidade, mas sempre terá alguém lutando para garantir os direitos do coletivo. Eu sou um deles, e existem outros. Parabéns pela sua determinação e sensatez, sábias palavras, sábias atitudes.

Anônimo disse...

Infelizmeente não se pode postar com tranquilidade a vontade do que se quer dizer. Vejam Samuel Eggers, ambientalista, mestrando em psicologia, contra as drogas, um rapaz puro. Foi bater de frente com a brigada militar, e foi morto, q morava em porto alegre e, qdo participou da "semana psicologia de caxias",foi seguido e morto a tiros. Certamente por um policial militar, que não pensa, um anencéfalo. Onde está a democracia? O direito de pensar?
Chegaram a serem presos os jovens q protestavam contra a derrubada das árvores! Donde se resume:matar pode, preservar árvores, não!!!