Na derrubada irregular de casa-símbolo do ambientalismo brasileiro, retrato da dura batalha por nova relação entre ser humano e natureza
Por Elenita Malta Pereira, colaboradora de Outras Palavras
A “poda”: Como se não bastassem os recentes acontecimentos ruins para as florestas brasileiras, na semana em que se comemorou o Dia Mundial do Meio Ambiente, ocorreu mais um episódio infeliz para quem se preocupa com a natureza no Brasil. No dia 6 de junho, a sede da Associação Gaúcha de Proteção Ambiental (Agapan), primeira ONG ecologista do país — acabou de completar 40 anos de atividade em abril deste ano – foi destruída, em Porto Alegre, numa sequência de irregularidades.
A demolição foi contratada pela empresa Peruzzato e Kindermann, que pretendia construir uma pizzaria e uma floricultura no local. O “serviço” foi realizado na tarde do dia 6, com um alvará provisório assinado por funcionários da secretaria Municipal de Indústria e Comércio (SMIC), e não pelo titular da pasta, o Secretário Valter Nagelstein. O problema é que a Prefeitura Municipal concedeu à Agapan o usufruto do terreno, localizado no bairro Praia de Belas (zona nobre da cidade), por 20 anos, desde julho de 2004. Na sede, onde a entidade realizava suas reuniões semanais, havia um telhado sustentável e um projeto de tijolos ecológicos.
Além da destruição indevida, os órgãos públicos estão sob suspeita de irregularidades administrativas. A SMIC não concedeu licença de demolição do imóvel, nem poderia fazê-lo, pois licenças desse tipo são da alçada da secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV). Mas autorizou a Peruzzato e Kindermann a utilizar o local para seus empreendimentos. Outro aspecto questionável foi a concessão do alvará para uma empresa privada, em área de propriedade pública, pela própria Prefeitura. Entretanto, segundo a assessoria de imprensa da Agapan, o erro maior partiu da secretaria da Fazenda Municipal, que não averbou o Termo de Usufruto assinado em 2004 e, por isso, o alvará foi emitido.
O caso está sendo apurado na Delegacia Estadual do Meio Ambiente, a cargo da delegada Elisângela Reghelin, e foi aberta sindicância interna na Prefeitura de Porto Alegre para investigar responsabilidades. Felizmente, o arquivo da entidade havia sido transferido para outro local, já que a sede demolida era uma construção em madeira.
A História: A Agapan foi uma das primeiras entidades de militância ecológica do Brasil; sua história se confunde com o surgimento do movimento ambientalista no país. Fundada em 27 de abril de 1971 (foto abaixo), por um grupo de naturistas preocupados com a visibilidade cada vez maior dos problemas ambientais, entre eles José Lutzenberger, Augusto Carneiro, Hilda Zimmermann e Flávio Lewgoy, foi protagonista de uma série de lutas importantes no contexto dos anos 1970-80. Seus membros promoveram o combate ao corte de árvores em zonas urbanas; à caça indiscriminada; às devastações das florestas e às queimadas; ao uso exagerado dos meios mecânicos contra o solo e a toda erosão provocada ou facilitada; à poluição do ar causada pelas indústrias e veículos; à poluição dos cursos d’água pelos resíduos industriais e esgotos não tratados; ao uso indiscriminado de agrotóxicos; à destruição desnecessária de belezas paisagísticas.
Principal teórico e primeiro presidente da entidade, o Agrônomo José Lutzenberger difundia também a luta por uma nova ética ecológica. Em seu livro Manifesto Ecológico Brasileiro – Fim do Futuro?, ele afirmava que os recursos do planeta Terra são limitados, e, numa perspectiva funcionalista, propôs a preservação de todas as espécies sem exceção, pois entendia a “Ecosfera” como uma unidade funcional em que cada peça (espécie) tem sua função específica, complementar de todas as demais. Em vista disso, para Lutzenberger, “a Ecologia, como Sinfonia da Vida é a ciência da sobrevivência”.
Dentre as batalhas iniciais da Agapan, três se destacaram: a luta contra a Borregaard, fábrica de celulose que se instalou às margens do Rio Guaíba sem colocar filtros em suas chaminés, o que causou enorme poluição no entorno de Porto Alegre, em 1973; o episódio em que o estudante universitário Carlos Dayrell subiu numa Tipuana, na frente da Faculdade de Direito da UFRGS, conseguindo conter uma sequência de cortes de árvores para a construção do Viaduto Imperatriz Leopoldina, em 1975; e a “Operação Hermenegildo”, campanha contra a mortandade de moluscos, peixes, animais e até seres humanos na Praia do Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar, no ano de 1978. Esses dois últimos casos geraram atritos com representantes da “ordem pública”. A partir do ato de Dayrell, os militares tomaram conhecimento da Agapan, considerando-a subversiva, inicialmente. Em plena ditadura militar, num contexto de repressão, a ecologia era uma luta possível, que ia contra os planos desenvolvimentistas do Estado.
Desafios: Pelo histórico de lutas, o “golpe” sofrido pela Agapan foi grande e causou a mobilização da comunidade ambientalista, que se manifestou a favor da entidade (na foto principal, a plantação de um pé de louro, no terreno da casa derrubada). O prefeito de Porto Alegre e outras autoridades públicas também se solidarizaram. Já havia um projeto de construção de uma nova sede sustentável; pode ser que agora, com a repercussão na mídia, recursos sejam alocados nesse sentido.
É simbólico que a demolição tenha acontecido na Semana do Meio Ambiente e no ano em que a Agapan festeja os 40 anos de existência. Assim como a derrota na Câmara, na aprovação do Código Florestal, e o assassinato de seringueiros-ambientalistas na Amazônia, esse lamentável episódio demonstra o quanto é difícil e arriscado defender a natureza no Brasil.
Mostra também o quanto a violência está presente em nossa sociedade, na área urbana ou rural, de Norte a Sul do país, quando se trata de riquezas naturais. A perspectiva do ganho econômico, imediatista, leva a condutas mesquinhas e ultrapassadas. Com o pretexto de construir uma pizzaria, passa-se por cima da sede de uma importante entidade ecologista gaúcha, assim como as motosserras, ou os tratores e correntes derrubam inúmeras árvores centenárias, na Amazônia, para plantar e criar gado.
Com todo o propagado “desenvolvimento” tecnológico do Século 21, a relação homem-natureza no Brasil ainda é primitiva, baseada na violência e na ambição. Seria preciso um grande esforço de conscientização para superar esse atraso e compreender a interdependência que envolve todos os seres vivos. Por enquanto, resta desejar boa sorte à AGAPAN e a todos os que assumirem o duro – mas tão importante – desafio de lutar pela proteção da natureza brasileira.
–
Elenita Malta Pereira é historiadora e doutoranda em História na UFRGS
fonte: site www.outraspalavras.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário