No próximo dia 15 de abril, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) votará a simplificação das regras para concessão de licença ambiental para o Programa “Minha Casa, Minha Vida” que faz parte do Plano Nacional de Habitação para empreendimentos imobiliários com finalidade popular. Se não houver resistência no Conama, nesta semana, poder-se-á consagrar o poder da derrubada da precaução ambiental neste e em outros programas similares. Quem ganha com isso?
Para maiores esclarecimentos, ao público em geral, cabe destacar o recente anúncio feito pela ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, prevendo a construção de um milhão de casas, em empreendimentos habitacionais com regras ambientais simplificadas, a fim de atingir famílias que ganham até 10 salários mínimos mensais. O plano prevê a diminuição do prazo máximo de licenciamento ambiental para apenas 30 dias e também contempla um conjunto de incentivos à construção civil, como a desonerações de impostos ao setor.
No plano apresentado, para manter o mesmo ritmo do crescimento “vale tudo” - também presente no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) - o setor pesado da construção civil e os governos imediatistas e inimigos dos “entraves ambientais” serão os maiores beneficiados. A estratégia do governo federal foi muito bem montada. Dificilmente, a ministra vai perder mais esta batalha contra a precaução ambiental, pois já triunfou nas derrubadas das restrições aos transgênicos, usinas nucleares e outras megaobras de infraestrutura do PAC.
A pressa na gestão pública é inimiga da precaução, da sustentabilidade ambiental e da democracia. Neste último item, a verdadeira protagonista das políticas públicas - a sociedade por meio do OP (Orçamento Participativo) - foi pega de surpresa, mais uma vez. As cooperativas habitacionais e o trabalho em mutirão, como ocorre há décadas no Uruguai, respeitando-se o marco legal das políticas de meio ambiente brasileiras, poderiam ser uma solução barata e mais sustentável do ponto de vista ambiental. Parece que este não será o caso.
Infelizmente, o imediatismo e a esquizofrenia na gestão pública reinam no Brasil, principalmente quando existem eleições pela frente e empreiteiras super-poderosas, inclusive nas doações de campanhas. Além disso, a memória da maioria dos gestores públicos deve ser curta, pois a tragédia ambiental que ocorreu nas cidades do nordeste catarinense no ano passado, ao que tudo indica, não serviu como exemplo daquilo que não deve ser feito. Provavelmente, esqueceram que grande parte das construções que desmoronou ou foi soterrada nas encostas pelas chuvas intensas estava em área de risco ou padeceu de um conjunto de inadequações no uso do solo urbano e rural – fato comum nos municípios brasileiros.
Na década passada, tive a oportunidade de acompanhar estudos de diagnóstico ambiental para o licenciamento de projetos do Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (Demhab), em áreas predominantemente rurais e naturais. Presenciei banhados, que alimentavam um arroio com águas razoavelmente límpidas e que abrigavam espécies ameaçadas, previstos para serem aterrados e ocupados por ruas. Também vi alguns capões de mata bem preservada, e que poderiam ser poupados, previstos para serem suprimidos e substituídos por terrenos “limpos” e urbanizados na base do morro mais preservado de Porto Alegre. Alertei o técnico responsável pelo projeto do Demhab. A resposta dele foi simples: “ou a licença é dada em um mês, com este projeto, ou vamos perder o financiamento que é internacional”. Passados mais de dez anos, a situação local é muito triste: desfiguração da paisagem natural, arroios poluídos, com suas margens impermeabilizadas e ocupadas por uma enorme quantidade de habitações agregadas de forma irregular e caótica.
Ninguém discorda que o déficit habitacional seja grande. Entretanto, para que o ambiente e a sociedade não paguem caro por políticas equivocadas, o governo federal deveria favorecer a urbanização de áreas adequadas e já ocupadas, fortalecendo os órgãos estaduais e municipais, atualmente muito fragilizados em sua gestão ambiental. Lamentavelmente, o que vemos é justamente o contrário: incentivo à ocupação de novas áreas e manutenção da frágil estrutura de proteção e gestão municipal.
Nos municípios, os planos diretores correm mais ao sabor do setor da construção civil e da especulação imobiliária, não se evidenciando a mínima prioridade à área ambiental. Um aspecto que denota o favorecimento pela ocupação urbana, onde quer que seja, é que as áreas naturais não trazem os impostos desejados para os cofres das prefeituras. Neste aspecto, ainda não se desenvolveu a contabilização do valor dos serviços ambientais (proteção às nascentes e às cheias, regulação microclimática, etc.) das áreas rurais e naturais das cidades. Algumas secretarias de planejamento e desenvolvimento urbano, inclusive, consideram como “vazios urbanos” as áreas sem construção, mesmo que resguardem processos ecológicos importantes, como servir de corredores ecológicos à avifauna dentro das cidades.
O que mais dói, aqueles que ainda amam a Natureza, é que os preços dos terrenos com banhados, campos nativos e matas são os mais baratos e, provavelmente, serão o principal alvo destes empreendimentos. A prioridade do programa de habitação será dada para projetos de estados e municípios que ofereçam maior contrapartida financeira, infraestrutura, terreno e menor valor de aquisição das unidades habitacionais.
E onde estão os limites máximos estabelecidos ao tamanho dos empreendimentos imobiliários? No ritmo atual, as nossas cidades estarão condenadas à perda irreversível de áreas com funções ecológicas fundamentais. Em Porto Alegre, o ritmo de perda de áreas naturais para empreendimento urbanos é impressionante: mais de mil hectares a cada dois ou três anos. Em Brasília, em um dos projetos habitacionais do atual programa nacional, está sendo montado um megaempreendimento para uma população de aproximadamente 30 mil pessoas, concentradas em 400 mil m2. Em apenas um mês, seria possível a avaliação de uma área desta grandiosidade, e com a eventual perda de ambientes naturais? Em um prazo tão curto, seriam considerados seus atributos intrínsecos e extrínsecos, incluídos ou não no Plano Diretor, e a capacidade de suporte para uma população de 30 mil pessoas?
Quanto à infraestrutura e à política das prefeituras, é comum a crônica e deliberada ausência de equipe técnica suficiente para análise dos licenciamentos. Os técnicos - geralmente fragilizados em sua decisão técnica, pró-precaução - sofrem recorrentemente as tradicionais pressões e ingerências políticas de suas chefias. Ademais, a “lógica” é a análise dos empreendimentos “caso a caso”. Depois de ter passado por várias secretarias o projeto acaba, por último, no órgão ambiental municipal. Assim, torna-se inviável a mudança para melhor no projeto ou mesmo qualquer articulação de políticas públicas com as demais secretarias. Em seu conjunto, a Política Ambiental acaba sendo, justamente, “não ter política”, entendendo-se aqui qualquer esforço que consolide um mínimo de respeito às leis que protegem à natureza, em especial a Constituição Federal, o Código Florestal, a Lei da Mata Atlântica e o conjunto de políticas do pobre e enfraquecido Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama).
A situação problemática não para por aqui. Alguns prefeitos de municípios pequenos reclamam ter ficado de fora, pois o programa habitacional somente incorpora cidades com mais de 50 mil habitantes. Admitem também que existe o risco de maiores migrações de municípios com menos população - maioria no Brasil –para os maiores centros urbanos. Tal situação agravaria o caos urbano de algumas grandes metrópoles.
Deve-se encarar com maior seriedade este assunto a fim de que não se consolide a velha esquizofrenia de governar de cima para baixo, sem transversalidade e sem democracia, causando maiores problemas socioambientais no Brasil. Meio ambiente não é problema. Com tempo e vontade política, que contemplem a precaução ambiental e os interesses da maioria, poder-se-ia fazer as adequações neste programa do Plano Nacional de Habitação a fim de se manter, pelo menos, um mínimo de sustentabilidade e não comprometer o futuro de nossas cidades. As políticas públicas devem ser conexas. As áreas naturais das cidades, e que desempenham suas funções ecológicas (serviços ambientais), estão em ritmo rápido de desaparecimento. Talvez algumas cidades não suportem mais uma ameaça ambiental de tal porte derivada de mais um plano governamental míope, midiático e imediatista.
A qualidade de vida dos cidadãos e o desenvolvimento das cidades também dependem da biodiversidade. Cabe a algum membro do Conama pedir vistas a esta proposta esdrúxula da redução de prazos na análise ambiental dos empreendimentos. Ademais, é bom lembrar: “Em Meio Ambiente, a pressa é inimiga da precaução”.
Paulo Brack é professor da UFRGS, biólogo, ex-técnico da Coordenação do Ambiente Natural da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre, mestre em Botânica e Doutor em Ecologia e Recursos Naturais. Atualmente é membro do CONSEMA no RS, pela ONG Ingá.
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