06 janeiro 2010

Um negócio plantado: Pais, avós e padrinhos das monoculturas florestais no Uruguai

Por Anahit Aharonian, Carlos Céspedes,Claudia Piccini e Gustavo Pinheiro
(Publicado no Semanário Brecha, de Montevidéu, em 11/12/2009)
Original enviado pelo jornalista Victor Bacchetta Tradução: Renzo Bassanetti


A política florestal mundial adotada pelo Uruguai tem sido o denominador comum dos sucessivos governos democráticos pós-ditadura cívico-militar, sem importar sua bandeira. Não obstante, deve se reconhecer que o governo blanco do Dr. Luis Alberto Lacalle foi um dos que mais contribuiu para que essa política setorial ganhasse a opinião pública e fosse centro das discussões. Isso foi lembrado recentemente pelo semanário Brecha, na edição de 20 de novembro de 2009, no artigo “Um campo aqui, outro lá...”

Contudo, seria simples demais acreditar que, tanto os interesses especulativos como o suposto sucesso do modelo florestal, são obra exclusiva de Lacalle. Dificilmente um governante teria poder suficiente para convocar e articular a vontade de tantos funcionários envolvidos em políticas que transcendem o próprio Estado e seus governos ocasionais. Por trás disso tudo existe uma enorme pirâmide de profissionais divididos em diferentes tipos de tecnocratas – públicos e privados, nacionais e internacionais, que permeiam todas as estruturas, tanto do Estado como das instituições internacionais. Isso permitiu à política florestal implantada no Uruguai atravessar com êxito todas as instâncias da discussão parlamentar desde o primeiro governo pós-ditadura.

Um detalhe “menor” mencionado pelo jornalista do semanário em sua nota pode nos servir de exemplo: “Definiram-se áreas com `prioridade florestal` e classificaram-se os solos para tal”.. Esses solos foram classificados para a atividade no princípio da década de 70. Naquela época, avançava mundo afora uma visão de produção agrícola que iria consolidar-se com a Revolução Verde. Nada ou pouco se sabia sobre conceitos fundamentais como “serviços ecossistêmicos”, “externalidades ambientais” ou “passivo ambiental”. O lema era claro: o solo produzia algo de valor econômico ou não servia. Sob essa ótica, e num Uruguai predominantemente produtor de grãos e pecuarista, 11,2% (1.810.000 hectares) do território nacional foi destinado aos cultivos florestais. Considerando o bom nível de capacitação da equipe técnica responsável por essa missão, assim como a visão da época, tudo levava a pensar que esses 11,2% eram imutáveis ou, na melhor das situações, reduzíveis. Contudo, aconteceu o contrário: No “dia dos inocentes” de 1987, foi aprovada lei de promoção do setor florestal (15939, de 28/12/1987). Escassos meses depois, os “solos de prioridade florestal” passaram a representar 14,2% (2.314.000 hectares) do total e, apenas dois anos depois, em 1990, no preâmbulo do lançamento do Plano Nacional Florestal (1991), alcançaram 22,1% (3.575.000 hectares). Ou seja, duplicou-se a superfície de solos originalmente prevista em 1971. Como isso foi acontecer?

Em meados da década de 80, a comunidade internacional concorda em deixar claramente documentadas as causas e possíveis soluções dos problemas ambientais e de desenvolvimento que afetavam o planeta. Esse documento, levado a público em 1987 e conhecido como “Relatório Brundtland” (ou “Nosso Futuro Comum”, em sua denominação original), foi fonte de inspiração da “globalização” dos problemas e conflitos ambientais. O ”mapa do caminho” delineado no Relatório Brundtland influiu grandemente, entre outros, na criação do IPCC [2] (1988).

No Uruguai, o Relatório Brundtland promoveu um “espírito” internacionalista e de compromisso com a causa comum ambiental. Os funcionários públicos e da iniciativa privada se preparavam para as “reuniões preparatórias” da Cume do Rio (1992), a instância internacional que mais chefes de Estado convocou na História. Nesse contexto, consegue-se uma vontade pública sem precedentes, por sua rapidez: promulgar, (entre o Natal e o Ano Novo de 1987), a Lei Florestal. As agências internacionais, tão solícitas diante dos problemas do mundo, não poderiam estar alheias a isso. Assim, entre outras, a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) apresentou prestimosa ao governo uruguaio uma proposta sobre o que fazer com os eucaliptos promovidos pela nova lei. Sua incidência foi tal que o texto promulgado em 1988 sobre o Plano Nacional de Reflorestamento baseou-se explicitamente nesse estudo da JICA.(Estudo de um Plano Diretor para o estabelecimento de plantações de árvores e utilização de madeira plantada na República Oriental do Uruguai”).

O desconhecimento de nossos técnicos, o vazio de informações e também político foram pedras fundamentais para definir e construir o perfil do “Uruguai, país genuflexo”, que campeou na década de 80 nas mãos do terrorismo de Estado. Essa realidade contribuiu ativamente para gerar um novo ator na vida política do Estado, o tecnocrata. Na mentalidade tecnocrática, segundo Finz [3], racionalidade e “verdade” estão indissoluvelmente unidas, segundo um esquema reconhecido quase que universalmente entre o pensamento contemporâneo, no qual, além do mais, a racionalidade está fundamentada sobre elementos meramente quantitativos. Já não haveria espaço para os juízos de valor, isto é, para os juízos que, por sua própria natureza, não podem ser mensurados por elementos quantitativos.

Segundo Patrício Silva [4], “tecnocracia se refere à adaptação do expert às tarefas de governo, argumentando possuir uma posição científica. Dessa forma, os tecnocratas se justificam a si mesmos, fazendo um chamado ao expert técnico baseado nas formas científicas do conhecimento, argumentando que eles podem entregar soluções técnicas a problemas políticos. Baseado em um conceito similar, Meynaud sustenta que a diferença ente um técnico e um tecnocrata estaria determinada pelo nível da tomada de decisões do qual ele participa e do seu grau de influência entre os líderes políticos”.

Desse modo, em um mundo onde a informação é poder, e onde esta, além disso cresce vertiginosamente, os tomadores de decisões se tornam cada vez mais dependentes da consulta de especialistas ou consultores externos que lhes forneçam dados pré-digeridos e tabulados, prontos para a tomada de decisão. Apesar de sua tarefa se limitar tão somente à reciclagem de dados parciais gerados por terceiros, sua síntese se transforma afinal na formadora da opinião pública. Desse modo, sua presença e intervenção na gestão do Estado se torna indispensável para a condução de algumas políticas setoriais que exijam informação altamente especializada. O conflito surge quando a opinião o especialista ou consultor não é imparcial, como muitas vezes acontece. Sua ligação a grupos ou corporativismos setoriais certamente estará acima dos interesses coletivos ou até políticos partidários.

As campanhas publicitárias também não são alheias à consolidação de políticas setoriais, à medida que são as que facilitam a construção de consensos hegemônicos. Cabe somente lembrar aquela que acompanhou a imposição do Uruguai Florestal e que levou à confusão conceitual entre “floresta nativa” e “plantação de eucaliptos’, ou à idéia de lucros inestimáveis, como a daquele folheto dirigido a convencer avós a investir em plantações florestais para seus netos, de forma que estes tivessem amanhã a possibilidade de estudar na Universidade de Harvard.

Ainda quando os discursos pareciam tão opostos entre os sucessivos governos, houve uma continuidade da política florestal nacional acima de toda a ideologia partidária. Isso é o que chama mais a atenção. Estaremos a tempo de reflexionar e gerar um debate genuíno em torno dessas políticas?

[1] Membros da Comissão Multisetorial (covitradi@adinet.com.uy)

[2] sigla em inglês de Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas

[3] Finzi, Cláudio, em Il Potere Tecnocrático, Bulzoni, Roma, 1977

[4]¨”Los tecnocratas y la politica en Chile: pasado y presente” publicado na Revista de Ciência Política, volume 26, nº 2, 2006.

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