Continua a polêmica do Pontal do Estaleiro. Acontece que a turma dos camarotes sempre quer andar na janelinha. É a síndrome de cachorro de madame. Tem gente bem aquinhoada querendo se apropriar de uma parte da vista do Guaíba. Dá para entender este desejo de ficar em pé na frente dos outros. Afinal, é o que mais acontece. Até em show. É a lei do mais alto. Os ambientalistas são contra. A esquerda atuante apanha, mas não cede. Qualquer um que tenha uma mínima idéia de coletividade, mesmo sem ser militante de qualquer coisa, também não é favorável. A votação na Câmara de Vereadores, finalmente suspensa, fora adiada para 12 de novembro. Depois das eleições. Mas antes dos novos mandatos. Que coincidência! Por que mesmo se deveria aceitar a construção de cinco edifícios de 12 andares, um hotel, centro de convenções e prédios para escritórios na beira do rio? Quem vai ganhar com isso? Não haveria uma maneira de utilizar a área com um sentido mais público?
Em outros tempos, essa pergunta seria considerada anacrônica ou como o sinal de um comunismo patético. Agora, porém, quando o Estado deve comprar bancos para salvar o capitalismo das suas crises cíclicas, vale o atrevimento. A discussão a respeito do projeto passa por elementos contraditórios. O primeiro é que até agora não houve propriamente discussão. Ao menos, quanto à posição de todos os vereadores, que terão de mudar a lei para garantir assentos privilegiados a quem puder pagar muito para ler o jornal contemplando o pôr-do-sol no Guaíba sem ninguém na frente. Pelo que li, também não existe realmente um estudo de impacto ambiental. Embora esses dois elementos sejam relevantes, vou desprezá-los. Ficarei com uma questão bem mais rasteira: por que deixar um espaço tão espetacular restrito ao uso de poucos?
Ali, por exemplo, poderia ter sido construído o sambódromo. Ah, não? Era só uma idéia. A Vila Cai-Cai, lembram muitos participantes de associações comunitárias, foi retirada do seu local de origem devido à proibição de se morar nessa área de preservação. Faz sentido. Os defensores do projeto Pontal do Estaleiro certamente têm razões estéticas 'socialmente neutras': favela enfeia a orla de um rio, já os condomínios de ricos, evidentemente, embelezam. A orla deve ser de todos. Quanto mais intocada, melhor. O sujeito tem de usar a orla para correr, brincar, pensar na vida, filosofar e refletir sobre a complexa relação entre natureza e cultura. Basta. De repente, até escreve um bom livro sobre o assunto. Agentes imobiliários, empresários da construção civil e toda sorte de idealizadores de 'utopias' urbanas para faturamento pessoal ou tribal devem ser mantidos longe do rio. Se for o caso, deve-se fazer uma corrente para abraçar e proteger a orla dos tubarões que compram por pouco para vender por muito.
Porto Alegre defendeu-se durante anos da invasão dos farrapos, que só tomaram a orla do Guaíba há pouco tempo. Pode, portanto, resistir novamente, agora a esse ataque desde dentro. É claro que os autores do projeto falam em estudos conseqüentes e em dar uma nova cara para a cidade. O tripé reuniria a Fundação Iberê Camargo, o novo shopping e o pontal. Cara nova é sempre um shopping mais alguma coisa. Porto Alegre já é a capital brasileira dos centros comerciais assépticos. Bate até São Paulo. Cinema em Porto Alegre está quase inviável. É quase tudo em shopping. Qual a relação? Simples. A orla não deve ser um shopping.
Juremir Machado da Silva
Publicado no jornal CORREIO DO POVO em 01/11/2008
*O autor autorizou a utilização de seu texto no Blog.
Juremir Machado da Silva é um escritor, jornalista e professor universitário brasileiro.
É doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V: René Descartes. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, é professor do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da PUC-RS e coordenador do programa de pós-graduação em Comunicação da mesma universidade. Também assina uma coluna seis vezes por semana (de quinta a terça-feira) no jornal Correio do Povo de Porto Alegre/RS
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