19 setembro 2008

O GOVERNO FORA DA LEI

”O problema do Brasil é que o estado está contra a nação.”
Ulisses Guimarães


Cabe a um procurador de Justiça ou a um secretário do Meio Ambiente cumprir e fazer cumprir a legislação em vigor e não questioná-la, dando a entender publicamente a sua disposição a desrespeitá-la. Também caberia a um secretário do Meio Ambiente respeitar a atuação dos ecologistas, voltada para fiscalizar o cumprimento da Lei e da missão institucional do órgão que preside e que existe graças às reivindicações dos próprios ecologistas. Entretanto, sintomaticamente, a mais alta autoridade ambiental do Rio Grande do Sul, Carlos Otaviano Brenner de Moraes, procurador de Justiça cedido pelo Ministério Público Estadual para ocupar o cargo de secretário do Meio Ambiente, na entrevista coletiva dada na reunião-almoço da Federasul (06/08/08) declarou ser contra o Princípio da Precaução e fez críticas improcedentes e desrespeitosas aos ecologistas.

Estas manifestações são sintomas da crise, impasse e retrocesso institucional e legal das conquistas realizadas pelo movimento ecológico em quase quatro décadas de ativismo democrático. O pivô dessa crise foram às pressões bilionárias do florestamento do Pampa gaúcho sobre o Governo do Estado e sobre a Fundação Estadual de Proteção Ambiental, a Fepam, órgão ambiental do Estado. A crise se instaurou com a recusa dos empreendedores em aceitar o ZAS, o Zoneamento Agro-florestal da Silvicultura, normatização técnico-científica feita pela Fepam, que disciplinaria o florestamento na Metade Sul do Estado. Os empreendedores consideraram que o ZAS prejudicaria os investimentos já realizados, pressionaram o governo e este cedeu. Presentemente a Fepam está sob um clima de intervenção governamental, pressionando a sua autonomia institucional. As críticas do senhor Carlos Otaviano revelam a irritação governamental diante da intransigência dos ecologistas que participam do Conselho Estadual de Meio Ambiente. Estes não admitem o retrocesso político que consiste na perda das prerrogativas institucionais e legais, representadas pela autonomia técnica e administrativa da Fepam, órgão ambiental que existe como uma conquista democrática do movimento ecológico. Este é o contexto político real das declarações absurdas do atual secretário do Meio Ambiente contra os ecologistas e contra o Princípio da Precaução.

O Princípio da Precaução é um dos fundamentos basilares do Direito Ambiental. Conseqüentemente, um procurador de Justiça e secretário do Meio Ambiente afirmar publicamente ser contra este princípio é, no mínimo, um escândalo ético e jurídico. O jurista Paulo Affonso Leme Machado, sumidade mundial em Direito Ambiental, há alguns anos afirmou em Porto Alegre que “O Estado brasileiro é réu em 97% dos processos tramitando na Justiça na área ambiental.” Não cabe a um governante discordar da legislação, mas cumpri-la. Portanto, as afirmações do titular da pasta ambiental do Rio Grande do Sul, discordando do Princípio da Precaução e criticando a defesa da autonomia da Fepam, feita pelos ecologistas, endossam como normalidade a patologia política de governos habituados a desrespeitar a Lei e a colocar o Estado no papel de delinqüente.

Mas, além de recusar o Princípio de Precaução, as críticas que ele dirigiu aos ecologistas foram de (1) fazerem política partidária com a questão ambiental; (2) estarem infiltrados na mídia e (3) em conselhos; de professarem (4) “um eco-idealismo preconceituoso e tendencioso”...) que (5) “acaba contribuindo negativamente para o meio ambiente.” (Ecoagência, 07/08/08). Ou seja, só faltou afirmar que os problemas ecológicos foram criados pelos ecologistas. A inconsistência, o primarismo, o desrespeito e a total falta de sentido destas críticas não mereceriam resposta. Entretanto, vindas de um secretário do Meio Ambiente, na atual conjuntura, elas evidenciam uma visão da atuação dos ecologistas sob um prisma conspiratório e uma atitude autoritária, incapaz de lidar democraticamente com o contraditório no contexto do Conselho Estadual do Meio Ambiente.

Eis a refutação das críticas que revela a sua total inconsistência: (1) Política partidária: há décadas o movimento ecológico gaúcho assumiu como diretriz política que a problemática ecológica é de natureza suprapartidária, não comportando a sua monopolização por nenhum partido político. (2) Infiltração na mídia: a mídia, em geral comprometida com os interesses do poder econômico e político, raramente expressa com fidelidade as posições dos ecologistas nos debates públicos. (3) Infiltração nos conselhos: a participação dos ecologistas nos Conselhos Estadual e Nacional do Meio Ambiente, na CTNbio e em outros órgãos deliberativos e consultivos tem sido sempre minoritária e frustrante. Nestes órgãos colegiados somos sistematicamente boicotados na nossa participação e derrotados nas votações. As alianças dos interesses imediatistas dos setores governamentais e empresariais, representados sempre em composições majoritárias, fazem com que, na prática, os encaminhamentos e decisões não sejam a favor do meio ambiente e das gerações futuras. Conseqüentemente, estes órgãos primam por funcionar de maneira precária, perversa e antidemocrática, na contramão das finalidades institucionais para as quais eles, supostamente, foram criados. Por esta razão, atualmente muitos ecologistas estão se opondo à participação de entidades ambientalistas no Conselho Estadual do Meio Ambiente e órgãos similares, pois esta participação legitima e ajuda a manter as aparências do simulacro de democracia que estamos vivendo e que ali se pratica.


Mas o secretário do Meio Ambiente ainda acusou os ecologistas de (4) “eco-idealismo preconceituoso e tendencioso”. Ora, ao contrário, somos nós, os ecologistas, que há quase 40 anos nos defrontamos com os preconceitos ideológicos ultrapassados e o imediatismo limitadores dos horizontes, das responsabilidades e da criatividade das nossas lideranças políticas e empresariais. Desde 1971 apresentamos a essas lideranças as provas científicas da inviabilidade ecológica da economia industrial contemporânea. Até os dias de hoje estas provas não apenas não foram refutadas, como foram confirmadas por novas evidências científicas.Tentamos mostrar que a questão ecológica é um paradigma civilizacional que não está nem à direita e nem à
esquerda, mas é um novo horizonte à nossa frente. Procuramos chamar a atenção para as vantagens estratégicas de não sermos hoje um país desenvolvido, pois ainda temos a oportunidade de não embarcar na canoa furada de um modelo de desenvolvimento insustentável, falido, ecocida e suicida. Apregoamos a possibilidade de atalharmos o caminho para uma civilização sustentável, com uma qualidade de vida melhor do que a existente nos países ditos desenvolvidos de hoje em dia. Tentamos seduzir o empresariado para o desafio, a criatividade e a iniciativa, indispensáveis à aventura coletiva e pioneira de desbravar os caminhos da sustentabilidade.

A maior receptividade ao nosso “idealismo preconceituoso e tendencioso” deu-se no setor da produção primária. Os movimentos da agricultura orgânica e da agroecologia hoje congregam milhares de agricultores no Rio Grande do Sul e em outras partes do Brasil; as feiras ecológicas são uma realidade na capital, em numerosos lugares do Interior e fora do Estado; a campanha por alimentos sem venenos criou um novo mercado local, regional e nacional para produtos ecológicos; atualmente o Brasil é campeão mundial em reciclagem de latas de refrigerantes, ocupando uma posição de destaque na reciclagem de plásticos e de outros materiais, bem como na indústria da reciclagem, etc.

No entanto nosso “idealismo preconceituoso e tendencioso” não conseguiu remover os preconceitos e o imediatismo do setor empresarial-industrial. As iniciativas de mudanças de processos industriais e de produtos visando à minimização dos impactos ambientais da produção e do consumo, a otimização do uso das matérias-primas, a diminuição do lixo industrial e das embalagens, a economia de energia, o tratamento e a redução das emissões de resíduos poluentes, etc., ficaram muito aquém dos paliativos mínimos necessários e desejáveis, até para uma economia convencional como a nossa. Existem exceções, é claro, mas que apenas confirmam a regra.

Nosso setor industrial, em vez de tomar a iniciativa e agir de maneira proativa, apenas reagiu defensivamente diante das novas exigências da legislação, normatização e disciplinamento dos diversos ramos industriais, feitas pelos órgãos ambientais do Estado e da União. A situação crítica do Rio Gravataí, por exemplo, e a mortandade de peixes, ali ocorrida em 2007, são resultados de décadas de resistência do nosso empresariado em assumir sua responsabilidade ambiental. E, por outro lado, da complacência dos sucessivos governos com as indústrias poluidoras e a sua inação em busca de tratamento de esgotos domésticos.

Atualmente, nenhuma pessoa educada e bem informada coloca em dúvida a inviabilidade ecológica do modelo de desenvolvimento que preside o
atual processo civilizatório. Mesmo que as soluções ainda não sejam de amplo domínio público, o fato é que hoje existe em todo o mundo uma abundante disponibilidade de conhecimento e informação sobre alternativas científicas, tecnológicas e institucionais para a sustentabilidade. É fundamental compreender que a sustentabilidade ecológica, condição de sobrevivência e de evolução da civilização, é uma problemática complexa, cujo encaminhamento está a exigir uma resposta coletiva comparável a um esforço de guerra.

O desafio que temos pela frente exige uma mobilização de criatividade, coragem, iniciativa e cooperação sem precedentes. No entanto, os últimos quase 40 anos de imediatismo da nossa cultura empresarial-governamental revelam um imobilismo, uma inércia, uma falta de coragem e de iniciativa que evidenciam uma espantosa irresponsabilidade e incapacidade de encarar a realidade.

Nós, ecologistas, tivemos um relativo sucesso em ecologizar a cultura, a legislação e o Estado. Mas fracassamos quase que completamente na nossa tentativa de ecologizar nossas lideranças políticas e empresariais. Como resultado deste fracasso, estamos diante de um impasse: temos uma legislação ambiental avançada, mas em franco retrocesso, sendo “flexibilizada” e negociada no seu cumprimento; temos um Estado aparentemente moderno, equipado com órgãos públicos para atender a demanda ambiental, mas administrado por políticos a serviço de minorias corruptas, autoritárias, antidemocráticas, parasitárias e retrógradas, ou da avidez das grandes empresas transnacionais.

Não conseguimos ser ouvidos, não conseguimos despertar nossas elites para a compreensão de que a sustentabilidade não é um retrocesso, mas o desafio de um avanço na direção de um novo projeto de civilização. Fracassamos em convencer nossas lideranças que a sustentabilidade é a primeira oportunidade histórica real que temos para ocupar um lugar ao sol entre as nações. Depois de quase 40a anos de pregação, esse fracasso nos faz pensar na atualidade do diagnóstico de Assis Brasil fez, há quase 100 anos, sobre a nossa realidade cultural e política: “um deserto de homens e idéias”.

(5) Finalmente, a declaração oficial de que os ecologistas estão “contribuindo negativamente para o meio ambiente”. Trata-se de uma avaliação que expressa a visão de um mundo virado de cabeça para baixo, a expressão quase demencial do abismo que hoje separa o Estado e os governos dos interesses maiores da sociedade. Mas a declaração do secretário do Meio Ambiente não é um fato isolado. Ele é um porta-voz da nossa cultura política do “Estado contra a nação.” Representa os interesses de um segmento social que perdeu completamente o sentido da realidade por nunca ter entendido a questão ecológica. É um absurdo afirmar que os ecologistas estão “contribuindo negativamente para o meio ambiente” quando tudo o que existe na área ambiental, a consciência ecológica, as leis, os órgãos ambientais, absolutamente tudo, inclusive a própria Secretaria Estadual do Meio Ambiente e o próprio cargo que o secretário ocupa, tudo isso existe devido às reivindicações dos ecologistas, que podem ser comprovadas historicamente.

Em 1971, a AGAPAN, através da liderança de José Lutzenberger, iniciou sua atuação pioneira questionando o modelo de desenvolvimento da civilização industrial e cobrando dos governos a criação de órgãos públicos e de uma legislação ambiental. Fomos vitoriosos. A ressonância da questão ecológica entre nós levou a um questionamento coletivo sem precedentes, que ocorreu paralelo ao processo de “redemocratização” do Brasil.

No plano institucional tivemos a inclusão da questão ambiental nas Constituições Federal, Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais; criou-se um novo ramo do Direito, o Direito Ambiental; nas universidades a ecologia levou à criação de novas especializações científicas e tecnológicas em praticamente todos os campos do conhecimento. A ecologia entrou na educação e na pedagogia; passou a inspirar poetas, escritores, intelectuais e artistas; abriu-se um novo campo de trabalho para profissionais nos órgãos públicos ambientais recém criados e na iniciativa privada, etc.

Esta mudança de paradigma cultural-institucional aconteceu graças à ressonância da atuação dos ecologistas na sociedade gaúcha e brasileira. Nós, respondendo pelos interesses maiores da sociedade civil, fomos vitoriosos. A concessão do Prêmio Nobel Alternativo, dada a José Lutzenberger em 1986, representou o reconhecimento mundial do seu trabalho pioneiro entre nós, no Brasil e no mundo. A realização da Conferência Mundial Sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a ECO-92, organizada pela ONU no Rio de Janeiro, também foi um acontecimento preparado pelo movimento ecológico gaúcho, brasileiro e internacional. A concepção de modernidade política, instaurada por três décadas de atuação pioneira do movimento ecológico gaúcho, contribuiu significativamente para a realização do Fórum Social Mundial por quatro vezes consecutivas em Porto Alegre, trazendo em cada vez cerca de 100 mil pessoas e tornando nossa capital, pela primeira vez, conhecida no mundo inteiro.

O fato é que conseguimos formar um consenso cultural em torno do novo paradigma civilizatório e a sua incorporação institucional e legal ao funcionamento do Estado e da sociedade brasileira. Este feito colocou a coletividade gaúcha no centro das atenções de todo o mundo, tornando realidade o verso do Hino Riograndense que diz: “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra”.


Tanto durante a ditadura como após o seu término, época em que a sociedade brasileira conseguiu montar o embrião institucional e legal para dar início ao
novo paradigma da sustentabilidade, o movimento ecológico sempre considerou que o caminho para a ecologização da economia passa obrigatoriamente pela democracia e pela democratização da cultura e das instituições sociais.

Não pode existir democracia sem a autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com suas prerrogativas de mútua fiscalização e controle. E sem uma sociedade civil também autônoma e participativa, fiscalizando atentamente os governos e as políticas públicas. É sintomático que o Governo do Estado do Rio Grande do Sul tenha atualmente um procurador de Justiça do Ministério Público Estadual ocupando o cargo de secretário Estadual do Meio Ambiente. A decisão governamental de escolher um secretário proveniente do Ministério Público Estadual vai contra o princípio democrático da autonomia dos três poderes.

Nós, ecologistas, acreditamos que a democracia é o único regime político capaz de promover a criatividade e a racionalidade social indispensáveis a um novo projeto de civilização voltado para a sustentabilidade. A democracia hoje é um imperativo de sobrevivência. Não temos opção: ou a democracia e a viabilização da nossa espécie neste Planeta ou a irreversibilidade da crise ecológica que prepara o colapso da civilização.

Consideramos que cumprimos a nossa missão histórica, ao colocar e institucionalizar parcialmente a questão ecológica. O atual impasse e o retrocesso das conquistas institucionais e legais na questão ambiental devem ser atribuídos, não aos ecologistas, mas ao fracasso da sociedade gaúcha, brasileira e internacional em se constituir como uma verdadeira democracia.

Consideramos que a democratização da sociedade e da nossa cultura política, a superação desta nossa democracia de fachada, é o único meio que temos para conservar e ampliar o legado do movimento ecológico. Agora cabe à coletividade gaúcha e brasileira fazer a sua parte: encaminhar, manter e ampliar estas conquistas através da consolidação de uma cultura verdadeiramente democrática que ainda não temos.

A principal convicção que adquirimos com a nossa experiência histórica é que sem democracia não há sustentabilidade e possibilidade de sobrevivência. A democracia é uma missão para todas as pessoas, e não apenas dos ecologistas. Somos democratas e não podemos aceitar a política do “Estado contra a nação”. Não podemos aceitar como normalidade democrática um Estado-delinqüente e apátrida, dirigido por governantes a serviço do atraso e do obscurantismo de minorias parasitárias e predatórias, nacionais e internacionais, dissociadas dos verdadeiros interesses da nação.

Portanto, o que nós, ecologistas gaúchos, estamos denunciando e exigindo dos poderes constituídos não é nenhum favor, nenhum privilégio, nenhum “eco-idealismo preconceituoso e tendencioso”: para começar, estamos exigindo apenas que o Estado cumpra o seu papel na consolidação da democracia: cumpra a Lei e as finalidades institucionais dos órgãos públicos que nós, democraticamente, junto com a sociedade civil, ajudamos a criar em quase quatro décadas de sacrifícios e lutas.

Porto Alegre, setembro de 2008.

Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural - AGAPAN

3 comentários:

Vinicius John disse...

Realmente é lamentável vermos "representantes" oficiais fazer o jogo das grandes empresas. O governo atual tem se superado e atinge quase o patamar da ditadura militar: fascismo na brigada (contra movimentos sociais), corrupção em tudo quanto é canto (do daer até a secretaria de cultura) e agora mais este atentado a nossa já escassa natureza. Parece as vezes que não estamos vivendo nenhuma mudança climática e os senhores do dinheiro continuam se lixando: ou nós os derrubamos e colocamos o ambiente em primeiro lugar ou nosso mundo desaparece pra uns poucos cretinos ganhares esta podre moeda...

Unknown disse...

O José Sarney disse que a nova constituição iria tornar o Brasil um "país ingovernável".

Anônimo disse...

O momento é gravíssimo, onde vamos parar sem cumprimento das leis ambientais?

Não sabem que estamos em pleno Aquecimento Global? Não sabem que sem Ambiente podemos ficar sem o Mundo??? O governo fora da lei não lê jornais? E as empresas não lêem jornais também?

Pára tudo que eu quero descer.

O problema é que temos que viver num mesmo mundo... e sofremos as consequencias de erros do passado em relaçao ao meio ambiente e dos ATUAIS!!