06 agosto 2008

Quando a imprensa serve à população

Por coincidência, três jornais da capital editaram no mesmo dia matérias e fotos sobre o projeto "revitalizador", tema que mal abordaram em anos".A excepcionalidade de que goza o jornalismo, dentre as instituições democráticas, consiste em que seu poder não repousa num contrato social, numa delegação do povo por eleição ou por nomeação com diploma ou por voto de uma lei impondo normas. Para manter seu prestígio, e sua independência, a mídia precisa compenetrar-se de sua responsabilidade primordial: servir bem à população".Claude-Jean Bertrand, professor da Universidade de Paris II, em A Deontologia das Mídias, de 1997.

Pois não é que ontem, por incrível coincidência, três jornais de Porto Alegre decidiram servir bem à população e publicaram amplas matérias com fotos da maquete do projeto "revitalizador" Pontal do Estaleiro. CP, JC e ZH (em ordem alfabética) trouxeram em manchetes de página informações sobre a proposta dos espigões, que, eles mesmos informam, começou a tramitar há dois anos. Vocês leram, prezados leitores?

Os porto-alegrenses, menos vocês, que já sabiam há meses, ficaram conhecendo no mesmo dia o que é a proposta que cria o precedente da privatização da orla do Guaíba, como se as editorias dos três periódicos trabalhassem juntas e juntas escolhessem as pautas. Conhecem-na, é pena, na véspera da audiência pública da Câmara Municipal, convocada há 15 dias, e na antevéspera da reunião dos vereadores que decidirá sobre o pretendido fatiamento das votações da reforma do Plano Diretor.

É de se temer que o alvo das publicações não tenha sido apenas o leitor, aquele que precisa ser bem servido. Por que? Porque 90% do material apresentam o empreendimento sob o viés favorável do empreendedor, e somente nos finais dos textos, em um parágrafo, aparecem vozes discordantes da sociedade, em um raquítico "outro lado" (também chamado de contraponto), como se coisa de um ou outro ecobabaca. Compreende-se que os jornais tenham lado, pois boa parte de sua receita procede da publicidade, e o setor imobiliário é grande anunciante, mas é de se perguntar, em nome da responsabilidade primordial mencionada por Bertrand, por que não levantaram antes a questão que afeta, pelo sim ou pelo não, a qualidade de vida na capital dos gaúchos?

Abordam-na agora, em operação coincidente, cinco anos depois da compra da área que pertenceu ao Estaleiro Só, adquirida por quem sabia que a lei impede a construção que não se enquadre em ações de interesse paisagístico, turístico e cultural. Abordam-na sem referir os seus pontos polêmicos, como para sugerir a impressão que a "revitalização" tem o apoio da imprensa que serve bem à população, da qual os jornais seriam a guarda avançada. Não é bem assim, como não é bem assim que se induz cidadãos e vereadores a concordar com uma iniciativa de alto risco, que não foi amplamente debatida porque os meios de comunicação preferiram não debatê-la. --

Erico Valduga está em http://www.ericovalduga.com.br

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