30 agosto 2011

Por uma Educação para o Desenvolvimento Sustentável

Foto Dulce Helfer

Atualmente vivemos muitos desafios simultâneos. Temos grandes crises na economia, na saúde, na segurança, no ambiente, nos valores, na educação. Cada uma delas seria o suficiente para que gastássemos muita energia, juntas uma alimenta a outra e fica bem mais complicado. O fato é que estamos passando para uma nova era onde não mais poderemos fingir que resolvemos as questões isoladamente como sempre fizemos no passado, sem nunca realmente solucionarmos nada e sempre postergarmos.

Este é o desafio que nos traz o desenvolvimento sustentável, já que fica evidente a crise ambiental que põe em risco a vida no planeta e nos obriga a um novo tipo de desenvolvimento que não só pare a destruição como também reconstrua muito do que já foi destruído.

Para “inventarmos” um desenvolvimento assim temos que corrigir os erros que nos levaram ao estado atual de risco. O maior deles é a desconexão do conhecimento fruto da fragmentação dos conhecimentos e de nossa incapacidade de utilizá-los de forma unificada. Sempre simplificamos olhando apenas alguns dos aspectos de uma questão e com isto perdemos a visão do todo e a capacidade de administrá-lo também.

Entre os milhares de desafios que se apresentam através do desafio central de por em prática este novo tipo de desenvolvimento que permita mantermos ou melhorarmos a qualidade de vida na terra estão: a busca de novas formas de produção da energia, novas formas de produção de bens, novos materiais sustentáveis e menos poluentes, novas formas de inclusão social, novos valores, novos transportes, novas formas de produzir alimentos saudáveis. Nenhum destes gigantes desafios se compara ao de articular todos os demais desafios em soluções uníssonas e viáveis.

Para que consigamos pessoas que desenvolvam esta nova visão integrada necessitamos rever a forma de produzi-las, a educação. É urgente que se inicie um grande movimento de construção desta nova educação a ecopedagogia, a educação para o desenvolvimento sustentável. O desafio é ainda maior porque temos que preparar as pessoas para algo que não fomos preparados e portanto, o caminho tem de ser construído ao mesmo tempo em que caminhamos. Se por um lado é um imenso desafio por outro é uma gigantesca possibilidade de aprendermos muito mais sobre como viver em harmonia com nosso meio e, com todas as mudanças que se farão necessárias quem sabe reencontramos a fonte de nossa própria harmonia.

Fica para os professores, como sempre, a tarefa mais dura e mais linda a de ensinar aprendendo esta nova lição.

Francisco Milanez professor, biólogo, arquiteto, escritor e ambientalista é presidente da AGAPAN (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) primeira entidade da luta ecológica brasileira, completando 40 anos em abril de 2011 .

Em nome da sobrevivência no planeta



foto Dulce Helfer
Quando a maioria de vocês ainda não tinha nascido, há 40 anos surgia o movimento ecológico brasileiro, em Porto Alegre, na Agapan - Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural.
Até então já havia pessoas que lutavam pelo conservação da natureza, por admiração e respeito.
Pessoas como estas criaram o movimento ecológico numa luta, que não era mais só para proteger a natureza, mas para permitir a sobrevivência da humanidade também.
Hoje
De lá para cá, muita coisa mudou, inclusive as pessoas que participam do movimento. No começo a luta era quase que exclusivamente para impedir a destruição de árvores, morros, rios e parques.
Hoje, a luta ambiental quer também encontrar formas melhores de fazer as coisas, reaproveitar os restos de nossa sociedade e discutir se algumas coisas são realmente necessárias para o nosso bem-estar.
Hoje, estamos em um momento interessante, que envolve toda a sociedade, na busca de soluções para viver melhor.
Todos nós somos importantes porque contribuímos para fazer com que o mundo esteja como está.
Existem duas maneiras de atuar na nossa sociedade: a forma ativa e a passiva.
Os ativos são em menor quantidade. Alguns defendem ativamente a natureza. Outros, a destroem desmatando, poluindo e explorando-a de forma agressiva.
Os passivos são a maioria e, aparentemente, não fazem nada, mas isto não é verdade. Todos nós compramos coisas e temos uma forma de viver que é a nossa. Isto, embora não pareça, é muito importante e também pode ajudar ou atrapalhar a questão ambiental.
Como modificamos
Quando compramos um veneno para matar baratas em casa, estamos atuando sobre o meio ambiente. Através das baratas, aquele veneno vai começar a fazer parte do meio ambiente. Se ele for um veneno que não é biodegradável, vai entrar no ciclo da vida e acabará voltando para nós, através dos alimentos. O que um dia esteve em uma barata ou formiga, amanhã poderá estar na gente.
Além do perigo imediato do veneno, quando compramos, estamos também estimulando a indústria a produzir mais veneno. Afinal, o que não é vendido não é produzido.
Quando ligamos uma luz desnecessária ou qualquer outro aparelho elétrico, estamos aumentando o consumo de energia e, para isto, vai ser queimado mais carvão ou vão ser inundadas mais terras com barragens para produzir a energia que gastamos.
Quando compramos um alimento para comer ou beber, cheio de produtos químicos, estamos consumindo algo que não é saudável ao invés de alguma coisa natural e estamos incentivando a produção dessas coisas.
Quando desperdiçamos papel, estamos desperdiçando as árvores das quais o papel é feito.
Quando jogamos na terra produtos químicos, estamos envenenando a terra e a água que são as fontes da nossa alimentação. Tudo o que vai para a terra, a chuva leva também para os rios ou para as nascentes destes rios.

A lição da ecologia

Através da ecologia, o homem descobriu que a vida não é apenas um somatório de acontecimentos isolados. Ao contrário, tudo está relacionado.
É muito bonito ver como somos ligados e dependentes da natureza. Tudo o que ela faz influi sobre a gente.
O veneno que o vizinho usou no jardim, amanhã poderá estar no nosso organismo produzindo uma doença. A poluição das fábricas, que incentivamos comprando, torna a vida pior.
Tudo influi sobre tudo. E por isto, quando se fala em consciência ecológica, se fala em ver o mundo de uma forma global. Isto é porque o que os países estão poluindo em seu território já está matando os animais lá longe, no pólo, através da água dos rios que acaba no mar e através do ar poluído que também chega lá.
Tudo isto não significa que tenhamos que tornar a vida algo desagradável, onde não se possa fazer nada de bom. Pensar assim, ao contrário, é libertar a humanidade de toda a mentira que ela mesma criou. A mentira de ficar comprando os alimentos pelas embalagens, sem se preocupar com o conteúdo. Quando comprarem as coisas, pensem no que elas vão causar para sua saúde ou quanto as embalagens delas podem vir a sujar o mundo. Pensem sempre sobre os efeitos de cada uma das ações de vocês no dia-a-dia. É exatamente o ato de pensar que pode libertar o homem da destruição do nosso planeta que é único.
Abraçar um amigo, sorrir para a namorada, conversar, caminhar, aprender-ensinar, são as coisas verdadeiramente boas, não poluem e tornam o mundo mais belo. O resto é enfeite.


fotos: Dulce Helfer

Água: necessidade radical



foto Dulce Helfer

A água será, nos próximos anos, o principal motivo de preocupação mundial. As próximas guerras serão realizadas em nome da água, ao invés do petróleo. A água limpa não é só base essencial para todos os processos vitais, nossos e de todos os demais seres vivos, ela é básica para toda e qualquer atividade produtiva de nossa sociedade. A agricultura é o maior usuário da água, seguida pela indústria, que não existe sem água em quantidade e de boa qualidade.

A dependência toda não impede que exatamente estas atividades destruam continuamente a preciosa e indispensável matéria-prima para a produção de suas riquezas. Hoje, quando migram, as indústrias vão atrás de água de boa qualidade, abandonando lugares onde elas já destruíram a água a tal ponto que não lhes serve mais ou tornou-se muito caro tratá-la. Quando os cidadãos do planeta ficarem realmente sabendo disto talvez já seja tarde para tomar medidas suficientemente fortes. A despeito da grande quantidade de água que existe em nosso planeta, apenas uma pequena quantidade dela é potável (menos de 5%). Desta pequena parte, somente a metade está disponível para nós, pois a outra parte está congelada nos pólos e nos picos das montanhas.

Formas de contaminação


No Brasil, temos grande quantidade de água, bastante bem distribuída, o que nos dá a sensação de que por isto podemos desperdiçar. Este é o pior dos enganos. É facílimo aniquilar com a água de qualidade. Basta poluí-la. Ela continua ali, dá a impressão de estar disponível, mas está envenenada. Muitas vezes continua até transparente e bonita, mas se encontra totalmente contaminada e oferece mais risco para o consumo do que outras extremamente escuras e feias.

Muitas são as formas de contaminação da água. A mais falada delas e mais freqüente em termos de quantidade é a contaminação por resíduos orgânicos. Seja ela causada pelos esgotos domésticos, seja por esgotos industriais. As nossas casas são culpadas por grande carga orgânica que as águas recebem, principalmente nos centros urbanos. As indústrias também são enorme fonte de poluição orgânica através de seus esgotos.Indústrias alimentícias, curtumes, celuloses e tantas outras que lidam com quantidades enormes de matéria orgânica são capazes de, sozinhas, poluírem mais do que uma cidade de porte médio. O pior sobre esta carga orgânica é o fato de que ela poderia ser evitada, totalmente, tratando os esgotos antes de jogá-los nos rios.


foto Dulce Helfer

Outras substâncias

A pior poluição para a água, porém, não é a orgânica. A poluição orgânica é basicamente o exagero de alguma coisa boa, que é matéria orgânica.A presença de matéria orgânica é importante para a qualidade da água, pois a sua presença garante a alimentação de várias espécies existentes na água. O excesso é que se torna perigoso porque acaba “apodrecendo” através da sua decomposição em grandes quantidades, que rouba todo o oxigênio dissolvido na água, que é necessário para os seres vivos que nela habitam.

A pior poluição é aquela que introduz na água substâncias que jamais deveriam estar nela. Este é o caso de metais pesados como o mercúrio, o cromo, o chumbo e de substâncias artificiais venenosas como os agrotóxicos, ftalatos e dioxinas que são lançados na natureza e na água pela agricultura e pela indústria.

Na agricultura são usados venenos, sejam eles herbicidas, inseticidas, acaricidas, fungicidas ou quaisquer outros. Estas substâncias são jogadas nas plantações e através da chuva ou da irrigação são carregadas para os rios, onde causam estragos imensuráveis. Já na indústria são usados produtos tóxicos, nos processos de fabricação dos mais variados produtos. Após usados, estes produtos, em geral misturados, vão parar nos esgotos industriais que são jogados também nos rios, muitas vezes, sem nenhum tratamento. Estas substâncias têm efeito tóxico muitas vezes maior que a matéria orgânica. Elas provocam doenças degenerativas, como o câncer, muitos problemas nervosos e muitas se acumulam no nosso organismo para sempre. Este tipo de mal que estamos introduzindo na nossa principal base para a vida é que não podemos permitir que nos unamos todos para garantir o nosso futuro, tanto na saúde como no trabalho para os quais a coisa mais importante é a boa água.



artigo pertencente a livro que será lançado 14 de novembro de 2011, na feira do livro de Porto Alegre.



23 agosto 2011

A grande vitória do NÃO à edifícios comerciais na Orla do Guaíba, em 2009

Clique na imagem para ampliar.
Campanha em vídeo produzido pela Casa de Cinema.

Motivos para votar no "Não"


Neste dia 23 de agosto comemora-se a vitória do NÃO na consulta pública sobre as alterações no regime urbanístico da Ponta do Melo, promovidas pela maioria da Câmara Municipal de Porto Alegre.

Com a alteração do regime urbanístico naquele local seria possível a construção de espigões residenciais na área do antigo Estaleiro Só.

Foi mais uma grande vitória da consciência ecológica e da cidadania de Porto Alegre.

FRENTE do NÃO:
•AGAPAN – ASSOCIAÇÃO GAUCHA DE PROTEÇÃO AO AMBIENTE NATURAL
•AMA – ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES E AMIGOS DA AUXILIADORA DE PORTO ALEGRE
•AMBI – ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO BAIRRO IPANEMA
•ASCOMJIP – ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA JARDIM ISABEL
•AMOVITA – ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA VILA SÃO JUDAS TADEU
•ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DO CENTRO DE PORTO ALEGRE
•CCD – CENTRO COMUNITÁRIO DE DESENVOLVIMENTO DA TRISTEZA, PEDRA REDONDA, VILA CONCEIÇÃO E ASSUNÇÃO
•NÚCLEO AMIGOS DA TERRA/BRASIL
•ONG SOLIDARIEDADE
•SIMPA – Sindicato Municipários de Porto Alegre
•SINDIBANCÁRIOS – Sindicato dos Bancários
•SINDICATO DOS SOCIÓLOGOS DO RIO GRANDE DO SUL
•MOVIMENTO EM DEFESA DA ORLA DO RIO GUAÍBA (Integrantes: •AGAPAN – Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural •Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho •AMABI – Associação dos Moradores e Amigos do Bairro Independência •AMBI – Associação dos Moradores do Bairro Ipanema •ASCOMJIP – Associação Comunitária Jardim Isabel •AMOVITA – Associação dos Moradores da Vila São Judas Tadeu •Associação de Moradores do Centro •Movimento Viva Gasômetro •Associação Moinhos Vive •CMVA – Conselho Gestor dos Moradores da Vila Assunção •Associação dos Moradores da Cidade Baixa •AMOBELA – Associação dos Moradores da Bela Vista •Conselho Popular do Partenon •Conselho de Usuários do Parque Farroupilha •CCD – Centro Comunitário de Desenvolvimento da Tristeza, Pedra Redonda, Vila Conceição e Assunção •CEUCAB/RS – Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do RS •AMSC – Associação dos Moradores do Sétimo Céu •AMATRÊS – Associação dos Moradores do Bairro Três Figueiras •AMA – Associação dos moradores da Auxiliadora •AMACHAP – Associação dos Moradores do Bairro Chácara das Pedras) •NAT/Brasil – Núcleo Amigos da Terra •ONG Solidariedade)

Apoios:
•Casa de Cinema de Porto Alegre •NEJ/RS – Núcleo de Ecojornalistas do RS •Defender – Defesa Civil do Patrimônio Histórico •IAB/RS – Instituto de Arquitetos do Brasil/Departamento do RS •Grafar – Grafistas Associados do Rio Grande do Sul •Associação Profetas da Ecologia •Devoção Senhora das Águas •Pastoral da Ecologia •Associação Comunitária do Campo da Tuca •AMFA – Associação de Moradores Fim da Linha do Alameda – Bairro São José •Comissão de Moradores da Rua da Represa – Bairro São José •Associação Clube de Mães Batista Xavier – Bairro Partenon •Associação de Moradores Quinta do Portal – Bairro Lomba do Pinheiro •Associação de Moradores da Vila São Pedro – Bairro Partenon •Associação de Moradores Estrela Cristalina – Bairro Partenon •Associação de Moradores Paulino Azurenha – Bairro Partenon •Pequena Casa da Criança – Vila Maria da Conceição •MEP – Movimento Ecológico Popular

Fonte: Gonçalo de Carvalho

Raquel Rolnik: O espetáculo e o mito



Na história dos megaeventos esportivos, o

propalado legado urbanístico e socioeconômico

configura a exceção, não a regra. Muito mais frequentes são os casos em que as populações desassistidas se transformam em vítimas de um processo atropelado de remoção e as contas das cidades mergulham no vermelho.

A urbanista Raquel Rolnik, professora da FAU-USP e relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, teve a oportunidade de conhecer in loco os impactos das Olimpíadas e das Copas do Mundo em diversos paí

ses. Em março de 2010, apresentou à ONU um relatório com denúncias de violações de direitos humanos e, a partir de então, transformou-se em uma espécie de porta-voz das comunidades atingidas por essas obras no Brasil.

“Os funcionários das prefeituras chegam e pintam as casas com um número, assim como os nazistas faziam na Segunda Guerra Mundial. Você sabe que a sua casa é um alvo, mas não sabe nem quando nem o quê vai acontecer com você”, denuncia a professora. Nesta entrevista, ela explica a origem do mito da bonança associada aos megaeventos e revela os fatores decisivos dos poucos casos em que o legado é inequívoco: transparência e participação.

Há evidências empíricas de que sediar grandes eventos esportivos traz desenvolvimento econômico e social?

Traz ganhos. A discussão é: ganhos para quê? E ganhos para quem? Porque, sim, mobiliza uma enorme quantidade de dinheiro e de investimentos. Não há a menor dúvida de que esses grandes eventos transformaram-se, sobretudo a partir do final dos anos 1980, numa espécie de constituição de branding: uma marca que é vendida associada à marca de uma cidade e de um país. Portanto, todas aquelas empresas que se associam a essa marca também são automaticamente promovidas no mercado internacional. E é uma estratégia bem-sucedida, porque o evento é visto por bilhões de pessoas, uma oportunidade única para se comunicar com essa audiência ou com esse público consumidor. É disso que se trata: de corporações e grandes negócios, um grande evento de marketing e de marcas associadas a ele.

Claro que, dependendo da cidade, do contexto e do

país, eventualmente esses momentos são utilizados também para realizar projetos que beneficiam não só as pessoas que vão usufruir do evento naquele momento, mas também outras pessoas a longo prazo. Basicamente, Barcelona ficou notabilizada por utilizar os Jogos Olímpicos para implementar um projeto de renovação urbanística e se recolocar no cenário internacional de cidades em um momento em que a gente vivia um processo muito radical de reestruturação produtiva com a globalização. Barcelona era uma cidade industrial e portuária e estava perdendo completamente o seu lugar, porque esse lugar da indústria não estava mais se sustentando economicamente. Ao mesmo tempo, a gente também vive nesse momento a grande era dos reajustes estruturais, da retirada do governo central e dos grandes investimentos públicos. As cidades começam a entrar num jogo de autopromoção no cenário internacional para atrair investimentos externos e promover uma reengenharia da sua base econômica.

Quando se discute o legado desses eventos, sempre s

e menciona Barcelona-92. Há algo que se compare na história dos Jogos Olímpicos e das Copas do Mundo?

Barcelona estabeleceu uma espécie de paradigma de que os Jogos sempre se associam a um legado de transformação urbanística. Mas os projetos de intervenção urbanística não são neutros. Tem beneficiários e tem prejudicados. É importante distinguir as duas coisas.

Quando se conta a história de Barcelona, separa-se a experiência específica dos Jogos Olímpicos da história imediatamente anterior. Para entender Barcelona, é preciso entender que mais de uma década antes (dos Jogos) a cidade ganhou um governo autônom

o socialista, num movimento que era importantíssimo para a Catalunha, de afastamento do controle autoritário e centralizado do franquismo. Trata-se de uma luta democrática e popular que durante pelo menos uma década fez um investimento radical na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e de suas periferias, investiu na melhoria das condições urbanísticas desses bairros populares, investiu na moradia, aumentou tremendamente o grau de participação popular na gestão da cidade. Então, quando Barcelona desenha o seu projeto olímpico, isso não veio do nada. Não se abriu o céu e caíram as Olimpíadas, como está acontecendo no Brasil. Mesmo assim, houve resistência, houve questionamento, houve luta, houve transformação da pauta de intervenção como consequência dessas lutas e desses questionamentos. Só que ninguém conta essa parte da história. Essa parte da história sumiu.

Então o grande paradigma de legado associado às Oli

mpíadas só aconteceu porque já existia uma trajetória independente do evento?

Evidentemente. Você pode ver o caso de Londres agora (sede das Olimpíadas de 2012). O projeto de Londres também tem uma história muito mais longa de integração, de intervenção no East End, historicamente a região com condições urbanísticas mais precárias. Além da construção de um grande parque público, a maioria dos equipamentos olímpicos será desmontada e, no seu lugar, vai ter habitação, comércio e serviços, com uma cota de 35% para habitação social subsidiada. E também no caso de Londres houve questionamento, também teve debate público e também o projeto foi transformado em razão disso.

Eu diria que onde já existe um processo público de debate e de intervenção territorial sobre a cidade, as Olimpíadas aparecem como uma oportunidade a mais dentro de um caminho para implantar esse plano. Onde não tem nada, cai do céu um projeto que não tem

absolutamente nada a ver. O caso do Brasil é emblemático. As cidades brasileiras passaram, depois da aprovação do Estatuto das Cidades, no ano 2000, a elaborar projeto de plano diretor, de planejamento participativo, pensando no futuro dessas cidades. Esses planos e projetos estão todos na gaveta ou foram rasgados.

O grande projeto olímpico do Rio de Janeiro foi elaborado conjuntamente e quase que diretamente por incorporadores privados que vão lançar um enorme investimento imobiliário na Barra da Tijuca e em Jacarepaguá, região na qual a intervenção urbanística pelo setor privado já estava acontecendo. Não mudou nada. Ao contrário, reforça a centralidade da Z

ona Oeste, uma centralidade de classe média, para poucos. É a extensão da Zona Sul. Não é o Rio de Janeiro que mais precisa de uma intervenção urbanística, como os bairros centrais. Tem tudo a ver com processos de valorização privada e muito pouco com o interesse público e uma revisão de tendências, de modo que os elementos perversos que existem no nosso urbanismo precário pudessem ser revertidos.

O legado inequívoco é a exceção dentro do histórico de grandes eventos esportivos?

Exatamente. Tem que entender isso no âmbito do que aconteceu no mercado de terras e no mercado imobiliário, com a globalização. O mercado imobiliário internacional passou a ser uma parte fundamental do circuito financeiro. A gente viveu uma “financeirização” do processo de produção de moradia e de cidades. Isso significa – e isso a gente viu com a crise americana – que os ativos imobiliários, mais do que representarem um valor de uso para as cidades, são um ativo financeiro passivo de especulação. Veja o que é Dubai. São operações de abertura de frentes par

a atração desses capitais financeiros. O megaevento nada mais é que um estande de vendas, fantástico e imediato, ainda por cima associado ao espírito do esporte, da solidariedade entre os povos, do nacionalismo segundo o qual o país vai mostrar ao mundo do que é capaz. Associado a todos esses elementos, é muito mais poderoso.

De onde vem esse mito da bonança socioeconômica associada à Copa do Mundo ou às Olimpíadas?

Se a gente olhar para a história dos grandes Jogos, eles tiveram lá as suas fases. Eles começam a ter muita importância, do ponto de vista cultural e geopolíti

co, no pós-guerra, quando se tratava de um espaço d

e conciliação entre as nações. Logo em seguida, no período da Guerra Fria, era muito importante para ver quem ia ganhar. Se eram os Estados Unidos, portanto a visão do livre mercado capitalista, ou se era o bloco soviético, e, posteriormente, a China. Era um encontro de forças, um cenário de reafirmação da Guerra Fria.

As Olimpíadas começam a ser associadas a uma intervenção na cidade nos Jogos de Los Angeles, em 1984, quando se mobiliza pela primeira vez o capital corporativo para fazer investimentos na cidade de forma mais permanente. E, desde então, toma conta. É um espaço basicamente das corporações, mediado pelos comitês olímpicos e comitês organizadores da Copa

do Mundo, portanto também dos governos.

E aí, crescentemente, surgem as operações com base no tal do legado e na transformação urbanística. Mas isso, como falei, coincide com dois fenômenos: a diminuição do papel dos Estados para atendimento de demandas urbanísticas e, consequentememte, a entrada do capital privado na gestão; e as cidades competindo na arena internacional globalizada para ver quem capta investimentos de um excedente financeiro que fica pairando sobre o planeta procur

ando onde se alocar. Os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo abrem um espaço para que esse investimento aconteça, especialmente pelo que carregam também de elementos simbólicos, com a vantagem de ser um ambiente de consenso. Todo mundo gosta, todo mundo acha legal.

É por isso que existe essa expectativa de um legado transformador, quando, na verdade, o saldo convincente para os interesses difusos é raríssimo?

É um espetáculo que mobiliza corações. A mobilização é real. Você não só assiste. Você torce, você sofre, você chora. O evento trabalha com esses sentimentos e por isso é tão consensual. Tudo que se associa ao evento é contaminado por esse mesmo espírito.

Por outro lado, quando você tem uma intervenção f

ísica, as pessoas enxergam que alguma coisa foi feita. Em muitos casos, há melhorias. Se você fizer o balanço de ganhos e perdas, a maior parte da população não ganha tanto e muito poucos ganham muito, mas há transformações reais. Na África do Sul, mesmo com todas as limitações, a ligação de corredor exclusivo de ônibus para Soweto muda completamente a vida de quem vive em Soweto. Não é imaginário.

Mas tem efeitos perversos que não são lembrados, que não são tocados. Falando como relatora da ONU para o direito à moradia adequada, e em geral para os direitos humanos: o foco principal dos direitos humanos são os mais vulneráveis. Esses deveriam ser os prioritários e, em geral, são os prejudicados. São os que acabam carreando os efeitos perversos.

Sobre o envolvimento da sociedade civil, mencionado pela senhora como fator preponderante para o sucesso de Barcelona: nós aqui no Brasil ainda tem

os tempo de fazer isso, considerando o horizonte de 2014?

Já começa por quem formulou o projeto olímpico. Quem participou dele? E do projeto das cidades para a Copa? Esses projetos são definidos a portas fechadas entre os agentes políticos e as corporações envolvidas com a produção do evento. Ponto. Tudo o que nós construímos no Brasil de participação popular, de conselhos, de planejamento participativo, está sendo completamente deixado de lado no momento de definição das obras para a Copa e para as Olimpíadas.

A senhora vê diferença na forma de condução desses processos entre países centrais e os menos desenvolvidos?

Uma coisa é você fazer uma grande operação de re

novação urbanística quando um grau básico de urbanidade já foi conquistado, como era o caso de Barcelona, ou como é o caso de Londres. Drante 50 anos, Londres fez uma política muito forte de investimento em habitação social, com 30% de todos os empreendimentos obrigatoriamente produzindo habitação popular, e por isso conseguiu praticamente zerar as condições precárias de moradia.

Outra coisa é a situação do Brasil, ou de Nova Délhi, na Índia, onde aconteceram os Commonwealth Games. Parece-me que, no nosso caso, esse tal legado deveria ser totalmente dirigido para constituir esse grau básico de urbanidade ou pelo menos ir na sua direção. Mas não. O que a gente viu é que as pessoas que moravam em condições precárias foram simpl

esmente expulsas, suas casas destruídas e nenhuma alternativa apresentada. E nós estamos repetindo aqui no Rio de Janeiro, neste momento, a mesma coisa. Em outras cidades brasileiras também. É assim: “Aqui vai ter um estádio? Ah, beleza, vamos saindo, vamos tirando tudo fora”, sem respeitar os direitos dessas pessoas e sem equacionar devidamente as alternativas.

Segundo o seu relatório, os impactos quanto a

moradia se repetem, sobretudo nos países menos desenvolvidos, em razão da urbanização precária?

Exatamente. Os impactos se repetem e são mais graves. Mas isso aconteceu em Atenas também.

Essa nova tendência de sediar a Copa do Mundo em países periféricos diz alguma coisa sobre a FIFA (Federação Internacional de Futebol)?

A Fifa vai aonde está o dinheiro. Eu pude testemunhar isso ao preparar um relatório sobre os megaeventos e o direito à moradia e apresentá-lo à ONU. Eu me dirigi, como relatora, ao Comitê Olímpico Internacional e à Fifa para poder discutir com eles, ver como é que eles tratavam essa questão. Eram denúncias que eu recebia sistematicamente de expulsões forçadas em massa, tanto em Pequim como em Nova Délhi, como em vários lugares da África do Sul. E com o COI e

u consegui estabelecer uma conversa, entender como é o processo, começar uma interlocução. A Fifa nem sequer me respondeu.

Em países periféricos não seria mais fácil empurrar certa exigências?

Não sei. Eu não fiz uma análise sobre como se deu a relação da Fifa, por exemplo, com o governo da Alemanha para a Copa de 2006. O que eu vi e que achei absolutamente escandaloso foi que a Fifa estabeleceu protocolos com os governo locais da África do Sul. Exigências do tipo: não se podia vender outra marca de cerveja, não apenas dentro dos estádios, mas num raio de quilômetros no entorno dos estádios. Foi estabelecida uma política específica com julgamento sumário no momento em que a pessoa pudesse cometer algum tipo de delito. De tal maneira que a gente pode chamar de estados de exceção e territórios de exceção. Eu não sei se essa é uma

tendência no tempo, que foi piorando, ou se é porque se trata dos países emergentes. Mas, de fato, o estado de exceção tem-se ampliado. E, eu não preciso dizer, as denúncias de corrupção em relação à Fifa são notórias.

Em termos de transparência, como a senhora avalia a remoção e o reassentamento de pessoas no Brasil para a Copa e para as Olimpíadas?

É completamente obscuro. Você não consegue encontrar em nenhum lugar, dentro dos projetos formulados pelas cidades, quantas pessoas serão removidas, qual é o valor que está previsto, o que foi apresentado para elas, para onde elas vão. Quando vai haver uma remoção, a comunidade tem de conhecer o projeto, tem o direito de discutir o projeto, tem o direito d

e apresentar uma alternativa, de estabelecer uma negociação. Tem o direito de ter um organismo independente para a própria comunidade poder acompanhar esse processo, com assistência técnica e jurídica, por exemplo, da universidade.

A senhora está falando da lei brasileira ou internacional?

Eu estou falando dos tratados internacionais sobr

e o direito à moradia dos quais o Brasil é signatário e que, portanto, são plenamente aplicáveis aqui. Eu tive a oportunidade de visitar comunidades que serão objeto de remoção. As pessoas não sabem de nada, não sabem por que, não sabem quando. Os funcionários da prefeitura chegam e pintam as casas com um número, assim como os nazistas faziam na Segunda Guerra Mundial. Então você sabe que a sua casa é um alvo, mas não sabe nem quando nem o que vai acontecer com você, nem que espaço você tem para conversar. Isso está acontecendo no Morro da Providênci

a (Rio de Janeiro), em Fortaleza, e em outras cidades, sem nenhuma transparência, numa violação clara do que dizem os tratados internacionais sobre a matéria.

Ricardo Teixeira costuma dizer que a CBF (Confederação Brasileira do Futebol) é uma entidade privada, a Copa é um evento privado, aparent

emente dando a entender que ninguém tem nada a ver com isso. Como a senhora analisa esse argumento?

A CBF pode ser uma entidade privada, mas noss

as cidades são públicas, pelo menos até onde eu entendo o conceito de cidade. A gente não pode simplesmente deixar que as nossas cidades, com o beneplácito e a participação dos nossos governantes, sejam transformadas por pautas definidas por u

ma entidade privada.

Nos estados e cidades que não costumam receber tanto investimento do governo federal, o gasto com estádios se justifica, eventualmente, pelas transformações urbanísticas associadas?

Essa é outra dimensão: o gasto público. O governo federal não está colocando recursos na construção de estádios, mas governos estaduais estão. Está-se usando subterfúgios e alguns jeitinhos para entrar dinheiro público. É o caso do Atlético Paranaense

, cujo estádio vai ser ampliado e reformado com a venda de recursos de potencial construtivo. O potencial construtivo é definido no âmbito do planejamento da cidade, portanto é de propriedade pública. Tem também o próprio investimento e financiamento do BNDES com juros mais leves que os do mercado, o que configura também financiamento público.

A segunda questão é o gasto total. Vale a pena? A gente tem casos de cidades que se endividaram. Olha o que está acontecendo na Grécia. Uma parte tem a ver com o custo das Olimpíadas de Atenas e que não foi pago. Agora está-se discutindo isso na África do Sul. O balanço é vermelho. Eu vi um estudo que fez o mesmo cálculo no caso dos Commonwealth Ga

mes, na Índia. E num país que tem uma demanda de investimentos tão importante como o nosso, vale a pena gastar nesse tipo de coisa? Acho que a pergunta é totalmente procedente.


Na sua opinião, o que feriria mais o orgulho

dos brasileiros? Um novo Maracanazo ou problemas de organização que pudessem prejudicar a imagem do país?

Tem uma dimensão no campo geopolítico internacional que é uma tensão entre os países emergentes e menos desenvolvidos e Europa e América do Norte. É uma tensão mais ou menos assim: “Ah, esses paisinhos emergentes não sabem organizar nada, são todos corruptos”.

Tem uma pauta muito importante que é a


afirmação dos países de que podem, sim, organizar grandes eventos. Isso foi extremamente importante para a África do Sul e é extremamente importante para o Brasil no cenário internacional, porque esses países estão tentando se colocar como contrapeso político numa História de hegemonia do mundo. Não é só de nacionalismo bobo, é também uma tensão real entre países. Quem manda no planeta? Acho que o Brasil está-se colocando numa posição de liderança dos excluídos. Esse componente é também muito importante. Para o cidadão brasileiro, evidentemente, as emoções de ganhar ou perder um jogo são terríveis.Pelo amor de Deus, só falta a gente perder essa final no Maracanã, vai ser muito deprimente. Mas do ponto de vista da geopolítica internacional, o impacto de organizar mal ou bem vai ser mais importante. A questão central é: para quem?

Eu gostaria que a senhora respondesse

à sua pergunta. No Brasil, a quem vai beneficiar? Qual a sua expectativa?

Eu tenho grandes dúvidas. Pelo andar da carruagem, esta é uma operação que beneficia algumas grandes corporações e empresas, que vão conseguir vender produtos e serviços, algumas nacionais, outras multinacionais. E vai encher os cofres da Fifa e da CBF e dos seus dirigentes.

Vai ter alguma coisa pontual, algum corredo

r de ônibus que vai beneficiar a população que não tinha um ônibus bom, alguma reforma de espaço público em que uma parte da população vai

encontrar um lugar agradável em cidades que são geralmente desagradáveis, algumas operações sobre assentamentos informais. Mas o centro da agenda, a balança dos ganhos e perdas é que é a questão.

Fonte: Maria Flo


Raquel em Porto Alegre